18 de outubro de 2007

PROPOSTAS PARA O INÍCIO DE UMA PRÁTICA COLETIVA

Coletivo sugere coletividade, conjunto, agrupamento, grupo, bando. É antônimo de individual, o que significa que não é pessoal, particular, singular. Ao mesmo tempo em que é múltiplo de individualidades - que se atritam e se atraem, que se moldam e se acomodam cada uma nas quinas e cantos das outras, se encaixando e deixando encaixar, se completando e complementando. O coletivo consiste, então, em um mosaico de individualidades constituindo-se como expressão de uma identidade comum.

Proponho que adotemos a prática da Criação Coletiva nesse novo processo que iniciamos, mesmo como desafio para descobrirmos novos caminhos de criação artística dentro do Bando Grito, levando em conta, também, procedimentos do Processo Colaborativo, mas utilizando os mesmos no coletivismo.

Os processos colaborativos, embora estejam associados à prática de um teatro contínuo, geralmente ligada ao trabalho de um grupo ou companhia, não se constitui como expressão de uma identidade comum, mas como contraposição e justaposição de diversidades individuais em que o elo comum e o fio condutor é o espetáculo. Na criação coletiva, o grupo em geral é anterior ao projeto, já está reunido quando trata de se colocar a pergunta “o que faremos”, ao passo que os espetáculos produzidos em processo colaborativo nascem de um projeto pessoal do diretor, que reúne a partir de então a equipe que necessita para empreender a criação. (...)

A constituição de um grupo que, com a experiência de diversos processos, tem a oportunidade de amadurecer suas relações pessoais e artísticas e sua intimidade criativa, se apresenta como um terreno propício ao exercício da autoria coletiva.[1]

No trabalho de criação coletiva (pelo menos idealizadamente) as funções especializadas não apenas se dissolvem entre os criadores, mas misturam-se numa massa homogênea onde é impossível identificar qualquer ingrediente. Todos os atores são responsáveis pela criação do espetáculo e de seus diversos elementos – encenação, dramaturgia, cenografia, iluminação, figurino, sonoplastia, produção, divulgação, etc – e o papel do diretor não é definitivamente excluído, mas absorvido pelo coletivo. O coletivo é, assim, quem atua, cria, dirige, sugere e decide tudo.

(...)quanto menor a afinidade e a experiência do coletivo, maior a necessidade de centralização do processo na figura do diretor. (...)quanto mais efetivos os elos que ligam os integrantes ao grupo e sua proposta – principalmente no que diz respeito a um entendimento comum da concepção que se coloca em prática e a um vocabulário cênico gerado por experiências anteriores – maior a possibilidade de autonomia desses artistas. Nesse sentido, o coletivo não se instaura pela simples reunião de indivíduos dedicados a um mesmo projeto, mas depende da construção de uma “cultura de grupo” baseada em uma subjetividade coletiva.[2]

Dessas necessidades notórias é que surgem as primeiras dificuldades para se criar coletivamente. Lidar com o coletivo exige uma identidade entre os participantes, além de afinidade, compromisso, generosidade e desprendimento. Essas duas características finais mais voltadas para o passo inicial da criação, a etapa de Livre Exploração e Investigação destacada por Antônio Araújo em seu Processo Colaborativo dentro do Teatro da Vertigem.

Proponho, então, que iniciemos nosso processo inseridos numa prática coletiva, mas tomando por base , também, algumas práticas adotadas por companhias que se utilizam do processo colaborativo como forma de nos organizar e orientar para podermos trabalhar com maior objetividade.

Posto isso, gostaria de apontar as etapas constituintes de um processo colaborativo, pelo menos como nós [o Teatro da Vertigem] o praticamos. Poderíamos destacar três grandes momentos, a saber:

1. Etapa de Livre Exploração e Investigação: em que as questões centrais do projeto são estudadas, improvisadas, e experimentadas, com o objetivo de mapear o campo da pesquisa, levando à identificação de parâmetros e possibilidades. Aqui é onde se dá, fundamentalmente, o levantamento do material cênico;

2. Etapa de Estruturação Dramatúrgica: em que ocorre a seleção do que foi levantado, visando à criação de partituras de ação, esboços de cena e, em seguida, à roteirização propriamente dita. Essa etapa pressupõe o estabelecimento de, pelo menos, uma primeira versão do texto;

3. Etapa de Estruturação do Espetáculo e de Aprofundamento interpretativo: em que a escrita da cena passa a ocupar o centro das preocupações, tanto no que diz respeito às marcações, ao espaço cênico, ao tratamento visual e sonoro, quanto ao aprimoramento do trabalho do ator. O aspecto dramatúrgico continua a ser desenvolvido aqui, enquanto lapidação e acabamento, porém como um foco secundário.[3]

Por enquanto atenho-me à primeira etapa, a etapa primordial. As primeiras decisões se refletirão em toda a futura criação do espetáculo. É o impulso inicial. Aquele momento em que respiramos fundo e nos perguntamos “o que faremos”, além de tantas outras perguntas “por que”, “pra que”, “como”, “onde”, “quando”, “quanto”.

Um dos primeiros passos tomados por Pina Bausch na criação de uma obra é a elaboração de perguntas ou palavras-chave associadas ao tema principal do trabalho, que servirão como molas propulsoras da criação.[4]

No nosso caso temos que nos perguntar também “qual é o nosso tema principal”. Ainda não temos respostas. Estamos partindo do zero; partindo de nós mesmos; de nossas questões, das mais superficiais às mais profundas; de nossas urgências e necessidades; ou até mesmo do nada, do caos, do agora, do instante efêmero, daquilo que surge de repente e nos inspira, nos eleva, nos derruba, nos faz pensar, nos faz dançar, nos faz falar sem parar, nos faz dar “pala”.

Proponho, então, que começamos por nos perguntar, nos examinar, nos interrogar para criarmos questões a serem resolvidas. Em segundo lugar proponho que essas questões sejam resolvidas, tanto individualmente quando em conjunto, em cena. Toda resposta, proposta, ou solução deverá ser dada em forma de cena. Prática essa intitulada de Workshop por criadores do processo colaborativo, e livremente apelidada pelo Bando de Pala Criativa.

No Teatro da Vertigem, o Workshop é a mais efetiva expressão autoral dos atores (...). Denominamos Workshop uma cena criada pelo ator em resposta a uma pergunta ou um tema lançado em sala de ensaio. (...) Workshop é uma fase ativa de pesquisa no processo de criação da performance, em que o artista tem liberdade de explorar diversas possibilidades em ensaios. É o espaço de experimentação por excelência, em que se chega a produção de protótipos.[5]

Acredito que, de certa forma, já iniciamos nosso processo apontando, inconscientemente, porém conscientes (rs), a criação para um formato que cedo ou tarde tenderia para essa via autoral. Esses primeiros encontros em que cada membro guiará e mostrará para os demais por onde passeia seus desejos e pensamentos em relação ao Bando e à criação artística é já uma espécie de Workshop, ou Pala Criativa, onde surgirão perguntas, respostas, caminhos, setas, indicações que poderemos seguir ou não. Por algum tempo estivemos distantes uns dos outros, alguns mais, outros menos, outros mais ainda. Mas o que me parece é que, como na primeira versão da performance “Enquanto eles não saírem eles estão lá dentro”, passamos apenas por um momento em que todos estivemos mergulhados em nós mesmos olhando pra fora e agora nos voltamos para contar uns aos outros o que vimos. É esse o momento de nos atritar, pra esquentar e pra nos lascarmos uns aos outros criando brechas e encaixes, estamos na Era da Pedra Lascada, ainda faremos fogo em palha seca. Assim espero eu. E que assim seja. Amém e Leftalominai.

Samuel Giacomelli



[1] Trotta, Rosyane. Autoralidade, grupo e encenação. Revista Sala Preta. ECA-USP. Pg. 158 e 159.

[2] Idem, Ibidem. Pg. 159.

[3] ARAÚJO, ANTÔNIO. O processo colaborativo no teatro da vertigem. Revista Sala Preta. ECA-USP. Pg. 131.

[4] RINALDI, MIRIAM. O Ator no processo colaborativo do Teatro da Vertigem. Revista Sala Preta. ECA-USP. Pg. 137.

[5] ARAÚJO, ANTÔNIO. O processo colaborativo no teatro da vertigem. Revista Sala Preta. ECA-USP. Pg. 136.